OS RECURSOS FINANCEIROS NA LDB*
Nicholas Davies
1- Introdução
A
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394), sancionada em
20/12/96 - embora produto sobretudo das iniciativas de grupos e partidos
conservadores, aliados ao MEC e a entidades defensoras das escolas particulares
- contém, na parte referente aos recursos financeiros, não só pontos negativos,
como também alguns positivos. É bom frisar, no entanto, que os pontos positivos
têm origem nas contribuições de educadores progressistas para o primeiro projeto
de LDB encaminhado à Câmara dos Deputados, em 1988 (SAVIANI, 1997). Dividimos
este capítulo em cinco partes: (1) definição e vinculação dos recursos para a
educação; (2) definição de despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino;
(3) a destinação de recursos públicos para escolas particulares; (4) a criação
de um padrão de qualidade e o papel supletivo da União; (5) a divulgação e
fiscalização da aplicação dos recursos públicos.
Antes
de se entrar na análise propriamente dita dos recursos financeiros, deve-se
enfatizar que o que importa não é tanto a letra e o espírito da lei em si, mas
sim a vontade dos Poderes Executivo, Judiciário e Legislativo e, sobretudo, a
mobilização da sociedade e dos educadores em particular para fazer a lei ser
cumprida. O Brasil é pródigo em leis (algumas boas) que, mesmo coerentes ou
avançadas, não são cumpridas, sobretudo quando beneficiam a imensa maioria da
população e/ou não interessam às classes dominantes, aos governantes e a outras
instâncias do Poder “Público” (Legislativo, Judiciário). Assim, o problema
maior não está na letra e/ou no espírito da lei em si (seja ela progressista ou
conservadora), mas sim na existência de forças sociais fora e dentro dos
aparelhos de Estado com força e dispostas a cumpri-la. Por exemplo, a educação
está prevista como direito de todos e dever do Estado desde a Constituição
Federal de 1934, mas até hoje o Poder “Público” (Federal, Estadual, Municipal)
não cumpre a sua obrigação, tantas vezes reiterada em Constituições e leis educacionais
ao longo das últimas décadas. Também desde a Constituição de
2- A vinculação de recursos para a
educação
Um
primeiro ponto positivo da LDB é a obrigação de a “União aplicar, anualmente,
nunca menos de 18%, e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, 25%, ou o
que consta nas respectivas Constituições ou Leis Orgânicas, da receita
resultante de impostos, compreendidas as transferências constitucionais, na
manutenção e desenvolvimento do ensino público”
(Art. 69 - grifo do autor). O avanço em relação à Constituição Federal (CF) de
1988 está na obrigatoriedade de o percentual mínimo ser destinado ao ensino
público. Se o Poder Público pretender destinar recursos oriundos de impostos a
escolas particulares (o que é permitido pela CF e pela LDB), tais recursos não
poderão fazer parte do percentual mínimo.
Entretanto,
o avanço legal que representa a vinculação de recursos para a MDE tem sido
minado pelas políticas concretas dos governos, como a Lei Kandir e as emendas
constitucionais que criaram o Fundo Social de Emergência (1994-1996), o Fundo
de Estabilização Fiscal (1996-1999)e a Desvinculação da Receita da União (DRU -
Além
do percentual sobre os impostos, a educação estatal conta com recursos adicionais como os do salário-educação
(calculado à base de 2,5% sobre o total de remunerações pagas aos empregados
segurados no INSS, segundo o Art. 15 da Lei 9.424, que regulamentou o Fundef) e
convênios como os da merenda, transporte escolar, municipalização (no caso dos
municípios), material didático. Os valores de tais convênios, bem como do
salário-educação, por não serem oriundos de impostos transferíveis
obrigatoriamente (constitucionalmente) pela União a Estados, Distrito Federal e
Municípios e pelos Estados a Municípios, constituem acréscimos ao percentual mínimo.
A propósito do salário-educação, vale lembrar a modificação introduzida pela Emenda Constitucional 14, de 12 de setembro de 1996, segundo a qual as empresas terão que recolher esta contribuição social aos cofres estatais, não mais podendo utilizar os recursos do salário-educação para adquirir vagas na rede particular para seus empregados e dependentes ou montar escolas ou rede de escolas próprias, como fazem algumas grandes empresas há muito tempo, como o Bradesco. Entretanto, segundo o parágrafo 3° do art. 15 da Lei, os alunos beneficiados com recursos do salário-educação até a edição da Lei 9.424 (24 de dezembro de 1996) poderiam continuar usufruindo do benefício até concluírem o ensino fundamental, o que significa que em 2004 já não mais haveria alunos beneficiados com tais recursos, isto é, pressupondo-se que os que começaram em 1996 terminaram o ensino fundamental em 2003. Uma outra modificação bem recente relativa ao salário-educação, constante da Lei 10832, de 29/12/03, é a que prevê a distribuição integral da quota estadual entre o governo estadual e os municipais com base no número de matrículas que cada um tenha no ensino fundamental e o repasse direto pelo FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) da parcela que cabe a cada um. Até 2003, o governo federal ficava com 1/3 da receita e devolvia 2/3 aos Estados onde ele havia sido arrecadado. A lei federal 9.766, de dezembro de 1998, estipulava que os Estados deveriam repartir esses 2/3 com os municípios com base em critérios a serem definidos em lei estadual, sendo um deles o de que pelo 50% da quota estadual seriam divididos entre Estado e municípios de acordo com o número de matrículas no ensino fundamental, regulamentação essa não realizada por vários governos estaduais até dezembro de 2003.
Uma
outra novidade introduzida pelo Art. 69 em relação à CF foi a de o percentual
mínimo válido ser, no caso de Estados, Distrito Federal e Municípios, o
estabelecido nas suas respectivas Constituições Estaduais e Leis Orgânicas, não
o da CF (25%), como espertamente interpretado por governos estaduais e
municipais e aceito por alguns Tribunais de Contas, como o do Estado do Rio de
Janeiro.
Vale
ressaltar, ainda, que o percentual vinculado à educação é mínimo, não máximo,
como muitas autoridades costumam pensar, e que a obrigação das autoridades não
reside na aplicação do mínimo (o que nem sempre fazem), mas sim do percentual
igual ou superior ao mínimo que atenda às necessidades educacionais da
população e obrigações constitucionais do Poder Público (ou, melhor, Estatal).
Se o percentual mínimo for insuficiente para atendê-las (o que é provável), ele
deve ser ampliado até o valor que permita tal atendimento. Infelizmente, os
órgãos encarregados da fiscalização do cumprimento das leis educacionais não
demonstram muita eficiência nesta função, deixando os cidadãos, que sustentam
tais órgãos com os seus impostos, completamente desamparados frente ao Poder
Estatal.
Cabe
lembrar, ainda, que o percentual mínimo
dos municípios tem uma destinação específica: ensino fundamental e educação
infantil. Segundo o inciso V do Art. 11 da LDB, se as prefeituras pretenderem
oferecer ensino médio ou mesmo superior, só poderão fazê-lo com recursos acima
dos percentuais mínimos e só depois de terem atendido às suas áreas de atuação
prioritárias: ensino fundamental e educação infantil. A Emenda Constitucional
14, por sua vez, estipulou que, por dez anos a partir da sua promulgação, os
Estados, o Distrito Federal e os Municípios destinarão não menos de sessenta
por cento dos recursos a que se refere o caput
do art. 212 da CF, ou seja, 60% de 25%, ou 15% da receita de impostos, para o
ensino fundamental.
Outros
pontos positivos da LDB estão nos parágrafos
3º, 4º, 5º e 6º do Art. 69, alguns dos quais já previstos anteriormente,
na Lei 7.348, de 1985, que regulamentou a Emenda Calmon, de
Já
o parágrafo 4º estabelece que, se o percentual mínimo obrigatório não for
aplicado num trimestre, o Poder “Público” é obrigado a corrigir monetariamente
o valor devido não gasto e aplicá-lo no trimestre seguinte. Esta disposição é
fundamental para evitar o que foi e é ainda muito comum entre os governantes,
que gastam bem menos do que o percentual mínimo nos primeiros dez meses do ano
e, em novembro ou dezembro, empenham (o que não significa necessariamente que a
despesa relativa aos empenhos seja
concretizada) valores astronômicos com o objetivo de compensar, em
valores nominais, o que não foi aplicado em meses anteriores. Infelizmente, um
parágrafo de formulação semelhante da Lei 7.348, de 1985, não foi cumprido
pelas autoridades, conforme pude observar em estudos sobre gastos com educação
das prefeituras fluminenses de Niterói, São Gonçalo, São João de Meriti, do
governo estadual do Rio de Janeiro, e nada garante que Estados e Municípios
estejam cumprindo o parágrafo 4º.
O
parágrafo 5º é interessante porque, ao obrigar o repasse, no período de dez a
vinte dias após a arrecadação, dos valores destinados à MDE ao órgão
responsável pela educação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios, evita, pelo menos no papel, que os órgãos da Fazenda fiquem retendo
e desviando tais valores para tapar rombos na administração ‘pública’ e que os
valores vinculados percam o seu poder real, como aconteceu com freqüência em
época de inflação alta, em que os impostos arrecadados num mês só chegavam aos
órgãos responsáveis pela educação muitos meses depois, acarretando perdas reais
de mais de 100%, conforme denunciado por especialistas em financiamento da
educação, como Jacques Velloso e José Carlos Melchior, e por depoentes à
Comissão Parlamentar de Inquérito instalada em 1988 para investigar o
cumprimento da aplicação dos percentuais vinculados à educação previstos pela
Emenda Calmon, de 1983. É um parágrafo muito bonito, mas de difícil aplicação,
pelo simples fato de que o Ministro ou Secretário da Educação, por ocuparem
cargos de confiança e estarem nas mãos do Presidente ou Governador ou Prefeito,
e não da lei, não vão denunciar o não-repasse para seu órgão, a não ser que
tenham entrado em rota de colisão com o governante.
Também
o parágrafo 6º - o atraso da liberação [dos recursos da educação] sujeitará os
recursos à correção monetária e à responsabilização civil e criminal das
autoridades competentes - é interessante, porém de difícil aplicação, pelas
mesmas razões apontadas no comentário sobre o parágrafo 5º.
3- A definição de gastos com manutenção
e desenvolvimento do ensino (MDE)
A
preocupação com a definição das despesas com MDE, que tem origem na LDB de 1961
e continuidade na Lei 7.348, de 1985, inspira os Art. 70 e 71, que, embora
contenham avanços, continuam apresentando problemas e mesmo contradição com
outros artigos. O avanço está no detalhamento (se bem que ainda insuficiente)
do que os governantes podem considerar despesas ao qual se vincula o percentual
mínimo. Programas de merenda escolar, assistência médico-odontológica,
farmacêutica e psicológica e outras formas de assistência social nas escolas,
por exemplo, não podem mais ser incluídas nas despesas com MDE, ainda que as
autoridades continuem sendo obrigadas a proporcioná-los. Também “obras de
infra-estrutura, ainda que realizadas para beneficiar direta ou indiretamente a
rede escolar”, não podem ser consideradas despesas em MDE, procurando-se,
assim, coibir o que era e é muito comum nos governos, que mandam asfaltar uma
rua ou construir uma rede de esgoto próximo (às vezes nem isso) a uma escola e
incluem esta despesa
Com
relação às despesas que podem ser consideradas de MDE, sua definição nos 7
incisos do Art. 70 não impede brechas ou irregularidades que as autoridades
costumam explorar. O inciso III, por exemplo - uso e manutenção de bens e
serviços vinculados ao ensino - permite que todas as despesas dos
hospitais-escola das universidades sejam incluídas no percentual mínimo de MDE,
quando é sabido que uma parte significativa destas despesas se destina ao atendimento
médico à população em geral, sem nenhuma vinculação direta e imediata com o
ensino. O inciso V - realização de atividades-meio necessárias ao funcionamento
dos sistemas de ensino - é deficiente porque não impõe um limite aos gastos com
a burocracia (atividades-meio), que, por controlar o uso dos recursos, costuma
tentar se apropriar de parcelas vultosas do orçamento da educação, deixando
minguados recursos para quem é realmente produtivo (nas atividades-fim). O
inciso VI, por sua vez, ao permitir que a concessão de bolsas de estudo a
alunos de escolas públicas e privadas seja considerada como MDE, contradiz
de modo flagrante o caput do Art. 69, que estabelece o percentual mínimo apenas para o
ensino público, excluindo, portanto, as escolas privadas do percentual
destinado à MDE.
4- Recursos públicos para escolas
privadas
Aliás,
nesta questão da destinação de recursos públicos para escolas privadas, a LDB
padece de várias incongruências internas. O Art. 77 permite a destinação de recursos públicos (não
especificando se fazem parte do percentual mínimo vinculado à MDE) para
aquisição de bolsas de estudo na educação básica (que vai desde a educação
infantil até o ensino médio) em escolas comunitárias, confessionais ou
filantrópicas, as quais constituem um universo restrito das escolas privadas,
conforme estabelece o Art. 20 da LDB (que classifica as instituições privadas
em particulares, comunitárias, confessionais e filantrópicas). Ora, recursos
públicos para bolsas em escolas privadas (que são todas as escolas
não-estatais), conforme permitido pelo inciso VI do Art. 70, são bem mais
abrangentes do que recursos públicos em comunitárias, confessionais ou
filantrópicas.
O
par. 1º do Art. 77, no entanto, estabelece que o Poder Público, embora possa
conceder bolsas em escolas comunitárias, confessionais, e filantrópicas, é
obrigado a investir prioritariamente na expansão da sua rede local. Quem irá
fiscalizar as autoridades e obrigá-las a investir mais na sua rede do que em
bolsas? As prefeituras de São Gonçalo e São João de Meriti, no Estado do Rio de
Janeiro, demonstraram fazer o contrário nos anos 90, investindo
prioritariamente em bolsas na rede particular. Foram punidas? Nesta questão, o
projeto de LDB aprovado pela Comissão de Educação em junho de 1990 era mais
avançado pois estabelecia, no Art. 105, que os recursos públicos só poderiam
ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas depois que
o Poder Público atendesse as responsabilidades com a sua rede, e também que,
faltando vagas na rede pública, o Poder Público era obrigado a expandir sua
rede no prazo máximo de um ano.
O
parágrafo 2º do Art. 77 arremata as incoerências no campo de recursos
financeiros, quando prevê que “As atividades universitárias de pesquisa e
extensão poderão receber apoio financeiro do Poder Público, inclusive mediante
bolsas de estudo.” Neste caso, qualquer universidade privada, e não apenas as
comunitárias, confessionais ou filantrópicas, pode receber recursos públicos
para pesquisa e extensão, que incluem mas não se restringem a bolsas de estudo.
A
LDB não é, pois, clara sobre a destinação legal de recursos públicos para
escolas privadas. Se o caput do Art.
69 diz que o percentual mínimo será destinado ao ensino público, o inciso VI do
Art. 70 o contradiz ao permitir que bolsas de estudo em escolas privadas sejam
incluídas nas despesas
Um
outro problema está no caráter supostamente não-lucrativo das escolas
comunitárias, confessionais ou filantrópicas. Conforme mostra Velloso, os
lucros de tais escolas nunca são registrados como tais: “todos os reais lucros
de uma instituição confessional de ensino atualmente podem ser transferidos à
mantenedora a título de ‘contribuição à Casa Provincial’, sendo então
registrados como despesas” (1990, p.
125, grifo no original). São ilusórias, pois, as condições estabelecidas pelos
incisos I ("comprovem finalidade não-lucrativa"), II ("apliquem
seus excedentes financeiros em educação"), III ("assegurem a destinação
de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional ou
ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades"), e IV
("prestem contas ao Poder Público dos recursos recebidos") do art. 77
para que as escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas possam receber
recursos públicos, pois são muitos os artifícios contábeis para conferir um
caráter não-lucrativo a tais escolas.
Este
breve exame de algumas incoerências na LDB permite, no entanto, detectar uma
coerência em favor dos interesses privatistas, uma vez que alguns princípios
válidos para o ensino público (gestão democrática, valorização dos
profissionais da educação, padrão mínimo de qualidade) não se estendem às
escolas privadas, que, no entanto, querem ter o direito legal de abocanhar uma
parte dos recursos públicos, sem falar na manutenção das isenções fiscais de
que gozam há muito tempo. Em síntese, quando os recursos públicos estão em
jogo, as escolas privadas querem se equiparar às públicas. Não se dispõem, porém, a se submeter aos mesmos
princípios da gestão educacional pública (o correto seria dizer estatal). O que
só confirma a secular relação ambígua entre o estatal e o privado no
capitalismo, ambigüidade que se torna mais intensa ainda por conta da tradição
patrimonialista brasileira, em que os governantes acham natural tratar a coisa
pública como propriedade pessoal, privada.
5- A criação do padrão mínimo de
qualidade e o papel supletivo da União
Os
artigos
Além
disso, a formulação sobre o padrão tal como se apresenta nos Art.
O
parágrafo 3º do Art. 75 (“... a União poderá fazer a transferência direta de
recursos a cada estabelecimento de ensino, considerado o número de alunos que
efetivamente freqüentam a escola”), embora pareça descentralizante, pode ter
implicações negativas para a constituição dos sistemas educacionais e a
conformação de uma identidade menos localista e mais abrangente, coletiva, dos
educadores. Este parágrafo estimula as unidades escolares e seus profissionais
a pensarem em função sobretudo de si próprios, isolados em suas unidades, com o
objetivo de captar recursos junto ao FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação). Isso pode criar concorrência entre as escolas, que deixam de se ver
como parte de um sistema educacional com objetivos comuns e passam a ter como
horizonte apenas os muros da própria escola ou da comunidade escolar, não
percebendo o caráter geral de seus problemas. Este parágrafo também padece de
uma visão produtivista da educação, ao correlacionar recursos a número de
alunos. Ora, o número de alunos deve ser apenas um dos parâmetros no cálculo do
montante de recursos necessários, não o único. Há outros parâmetros: as escolas
rurais/escolas urbanas, 1º segmento/2º segmento, cursos noturnos/cursos
diurnos, escolas especiais. Correlacionar recursos a número de alunos é
introduzir ou reforçar a lógica do mercado na escola, que passa a ser vista
como uma empresa cujo sucesso depende do número de clientes/consumidores (os
alunos).
6- Divulgação e fiscalização da
aplicação dos recursos
Este
talvez seja o ponto mais importante e difícil. A experiência brasileira tem
demonstrado que de nada adiantam leis boas se elas não forem cumpridas e se as
autoridades não forem punidas pelo seu descumprimento. O Art. 72 estabelece que
o Poder "Público" é obrigado a divulgar, nos balanços (prestação
anual de contas) e nos resumos mensais da execução orçamentária, as receitas e
despesas vinculadas à MDE, exigência essa semelhante à do Art. 7º da Lei 7.348,
de 1985, que estabelecia que as ações definidas como de MDE deveriam ser
identificadas nas fases de elaboração e execução do orçamento. Ora, em estudos
que realizamos sobre gastos em educação de várias prefeituras fluminenses e do
governo estadual do Rio de Janeiro (DAVIES, 2000), esta identificação não tem
sido feita, dificultando enormemente o controle social preciso.
E
o que fazem os órgãos fiscalizadores, que, segundo o Art. 73, devem velar pelo
cumprimento do disposto no art. 212 da Constituição Federal, no art. 60 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias e na legislação concernente? Não
são poucos os problemas relativos a tais órgãos fiscalizadores. Um é que não
sabemos que órgãos são estes e o alcance e interesse de sua ação. O Tribunal de
Contas? O Ministério Público? A Câmara dos Vereadores? A Assembléia
Legislativa? A Câmara dos Deputados? No caso dos Tribunais de Contas (TCs), a
sua competência e confiabilidade deixa muito a desejar, conforme mostramos em
outra parte deste livro. Além disso, seus conselheiros são nomeados segundo
critérios políticos (a partir de conchavos entre governador e deputados ou
entre prefeito e vereadores, no caso dos TCs do Município do Rio de Janeiro e
São Paulo), o que enfraquece sua confiabilidade. Os órgãos legislativos, por
sua vez, embora formados por “representantes” do povo, quase sempre revelam, no
momento de apreciação das contas dos governos, forte propensão a representar os
interesses das autoridades em troca de vantagens e cargos e aprovar as contas,
mesmo quando contenham irregularidades como a não-aplicação do percentual
mínimo da educação e tenham recebido, dos TCs, parecer prévio de rejeição, cuja
eficácia é nula, pois pode, legalmente, no caso de contas municipais, ser
derrubado por decisão de 2/3 dos vereadores, conforme permite o parágrafo 2º do
Art. 31 da CF: “O parecer prévio [...] só deixará de prevalecer por decisão de
dois terços dos membros da Câmara Municipal”.
7- Conclusão
Este
breve exame dos artigos que tratam dos recursos financeiros na LDB mostrou
pontos positivos, outros insuficientemente definidos, e outros claramente
favoráveis à destinação de recursos públicos para escolas privadas, ainda que
com ambigüidades. Entretanto, conforme dito acima, o mais importante não é a
letra ou mesmo o espírito da lei, mas sim as classes e grupos sociais que
dentro e fora dos aparelhos de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário)
implementarão ou não tais dispositivos legais. Dada a estrutura privatista dos
aparelhos de Estado brasileiros e a correlação atual não muito favorável à sua
democratização, agravada pelo contexto neoliberal, o mais provável é que os
pontos negativos (destinação de recursos públicos para escolas particulares)
sejam plenamente aplicados, enquanto os positivos (vinculação de recursos,
definição mais precisa da despesa em MDE, divulgação e fiscalização da
aplicação) só o sejam parcialmente. Em suma, seguindo a tradição brasileira, as
leis de interesse dos governantes, da alta burocracia estatal e das classes que
os sustentam serão aplicadas com todo o rigor, porém as outras, de interesse
das amplas maiorias, serão esquecidas ou, quando acionadas pelos setores
progressistas, serão alvo de disputa judicial que promoverá a sua suspensão ou
atrasará a sua aplicação. Só a organização e mobilização permanente, e não
apenas episódica, dos setores populares e, no caso da LDB, dos educadores,
aliados com setores populares em torno de um projeto de democratização real
(não apenas eleitoral) do Estado, da sociedade e da educação, poderão fazer com
que os aspectos positivos da LDB sejam cumpridos e, neste processo de
organização e mobilização, se construam elementos reais e legais de uma nova
educação a serviço das maiorias.
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* Versão
atualizada do artigo publicado originalmente em Universidade e Sociedade n. 14, outubro de 1997.