PLANO NACIONAL DE EDUCAÇÃO: MUITO
DISCURSO, NENHUM RECURSO*
Este texto pretende examinar alguns
aspectos do Plano Nacional de Educação (PNE) previsto na Lei 10.172, sancionada
pela presidente Fernando Henrique Cardoso em 9 de janeiro de 2001, sobretudo os
financeiros, fazendo referência também tanto aos 2 projetos de lei de PNE
encaminhados originariamente em 1998 à Câmara dos Deputados - um das entidades
(sobretudo sindicais ligadas à educação) que se reuniram para este fim no II
Congresso Nacional de Educação (CONED), em novembro de 1997, em Belo Horizonte,
outro do MEC - quanto ao seu substitutivo, de autoria do seu relator, Deputado
Nelson Marchesan, aprovado pela Câmara dos Deputados em junho de 2000 e pelo
Senado em dezembro de 2000. Para fins de simplificação, os diferentes projetos
serão identificados como segue: Plano da Lei - PNE-Lei; Plano do substitutivo -
PNE-substitutivo; Plano do CONED - PNE-Coned; Plano do MEC - PNE-MEC. Vale
ressaltar que o PNE-Lei, embora originário do PNE-substitutivo, é uma cópia
quase total do PNE-MEC, pelo menos em suas diretrizes e metas, em conseqüência
dos vetos presidenciais ao PNE-substitutivo, aprovado pelo Senado e encaminhado
ao presidente para sanção.
Tais planos, documentos
extensos com até mais de 100 páginas, têm em comum um diagnóstico dos vários
níveis e modalidades de ensino e a definição de diretrizes e metas de expansão
que os governos federal, estaduais, municipais e do Distrito Federal deveriam cumprir
num período de até 10 anos. Embora sejam 4 planos diferentes, 3 deles se situam
num mesmo campo - o do então governo federal - e o outro, o do Coned, se
encaixa num campo de oposição.
A exemplo de qualquer outro
plano, o PNE precisa ser visto no contexto maior das políticas governamentais,
que, sob o pretexto da existência de uma crise fiscal e gerencial do Estado,
propõem a redução dos gastos sociais e/ou seu redirecionamento para setores
supostamente mais carentes, a privatização, e incentivo à participação da
sociedade na manutenção de serviços públicos.
Antes de comentarmos pontos específicos do PNE-Lei, cabe enfatizar a fragilidade da idéia de plano numa sociedade e Estado cuja lógica é regida pela racionalidade do capital em sua ânsia de reprodução, e não pela racionalidade do atendimento das necessidades humanas. Ainda que as políticas sociais em Estados capitalistas atendam parcialmente às necessidades das maiorias, em última análise são subordinadas ao movimento maior do capital. Assim, por mais bem concebido e intencionado que seja um plano, suas possibilidades de realização serão necessariamente limitadas e truncadas dentro da ordem capitalista e sobretudo da ordem capitalista subordinada, como é o caso brasileiro. Além disso, é um equívoco pensar que um plano de educação possa ser realizado desvinculado de outras medidas destinadas a resolver ou pelo menos atenuar problemas sociais que afetam enormemente os problemas educacionais, como o desemprego, os baixos salários, a falta de habitação decente, saúde, transportes, cultura. Um plano de educação terá poucas chances de êxito se não for associado a planos também em outras áreas.
Dois exemplos mostram a fragilidade da idéia de plano, sobretudo de plano que se pretende voltado para atender as necessidades da imensa maioria da população. Um é o montante que o povo brasileiro vem pagando de juros e/ou amortização do principal da dívida pública interna e externa. No âmbito federal este valor supera o pagamento do funcionalismo público federal. Segundo artigo publicado em maio de 2000 no informativo INFORMANDES (ANDES, p. 12), do Andes (Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior), de 1995 a 2000 (previsão) os gastos com pessoal em relação às receitas correntes do governo federal teriam caído de 29,82% para 21,58%, enquanto a proporção dos juros também em relação às receitas correntes teria subido de 13,22% para 31,23%. Em valores previstos para 2000, os juros iriam consumir bem mais (R$ 78,1 bilhões) do que o pessoal (R$ 52,3 bilhões).
Outros exemplos são as Emendas Constitucionais (ECs) e leis que, de iniciativa do governo, vêm retirando recursos da educação. A EC que criou o Fundo Social de Emergência, em 1994, e posteriormente prorrogada até dezembro de 1999, com o nome de Fundo de Estabilização Fiscal (FEF), resultou na perda de bilhões de reais para a educação pública em âmbito federal, estadual e municipal, pois desvinculou 20% dos impostos federais destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE), assim como 20% do salário-educação. Esse prejuízo, pelo menos para a educação administrada pelo governo federal, continuou de 2000 a 2003, em conseqüência da prorrogação desta desvinculação, agora com o nome de DRU (desvinculação da receita da União), pela EC 27, de março de 2000. O prejuízo continuará pelo menos até 2007, com a prorrogação da DRU pela Emenda Constitucional 42, patrocinada pelo governo Lula.
Antes de examinar o PNE,
convém fazer uma breve comparação entre o do Coned e o do MEC, que tramitaram
como projetos de lei em 1998 e 1999 e que revelam diferentes concepções de
Planos de Educação.
2- O plano de gabinete do MEC: omissão do Estado, estímulo à participação da “sociedade”, privatização, e “racionalização” dos gastos
O PNE-MEC é apresentado como “resultado de um processo aberto e democrático que se desenvolveu ao longo de 1997, com consulta aos diferentes agentes públicos e atores sociais diretamente envolvidos com a questão educacional” (BRASIL. MEC, 1998), apontando-se o Consed (Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação) e a Undime (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) como interlocutores privilegiados. Ora, um processo aberto e democrático não se limita à consulta, que pressupõe uma autoridade que aceita ou rejeita, segundo seus próprios critérios, as sugestões porventura oferecidas pelos vários agentes envolvidos. Um processo aberto e democrático exige, ao contrário, que os vários setores interessados, e não apenas representantes estatais, como é o caso do Consed e da Undime, apresentem suas propostas em pé de igualdade e procurem estabelecer os pontos consensuais e negociar os conflitivos. Não foi isso o que aconteceu, sendo a proposta do MEC apenas uma confirmação da política educacional do governo federal. A consulta supostamente pretendida pelo MEC parece ter sido apenas uma tentativa de dar um verniz democrático ao Plano, uma vez que, conforme o Ministro Paulo Renato reconheceu na Exposição de Motivos, o Plano representa “a continuidade da atual política educacional” (BRASIL, MEC, 1998). Ora, se o MEC pretendesse consultar seriamente os diferentes setores envolvidos com a educação, teria que admitir que o Plano, a partir dessa consulta (se fosse para valer), pudesse alterar a atual política educacional. Como o Plano representava, segundo as próprias palavras do Ministro, uma continuidade da política educacional, depreende-se que a consulta foi só para constar.
Para o MEC, os principais problemas do sistema educacional seriam sua ineficiência, a má formação dos professores, a gestão incompetente dos recursos humanos e financeiros, e as soluções não dependeriam apenas do Estado. Ao contrário, a responsabilidade pela educação, mesmo a pública, seria de todos: a família, os meios de comunicação de massa, as organizações não-governamentais, leigas ou confessionais, a ação da iniciativa privada. O trecho a seguir mostra a participação que se espera da “comunidade”: “há que se incentivar igualmente o trabalho voluntário e a organização das comunidades, para, de forma participativa, colaborar na gestão da escola, para melhorar a qualidade do atendimento escolar e para enriquecer o patrimônio da escola, práticas que, em todas as democracias, constituem manifestação do exercício da cidadania responsável” (BRASIL, MEC, 1998, p. 17). A “descentralização” das responsabilidades, no entanto, não é acompanhada da descentralização das decisões maiores, relativas à política educacional, que continuam concentradas no governo federal. A gestão é incentivada, no máximo, em nível micro, da escola, não se estendendo aos órgãos centrais dos diferentes sistemas educacionais (municipais, estaduais e federal). Ou seja, para cuidar do cotidiano escolar, sobretudo das carências decorrentes da omissão do Poder Público, a “comunidade” é chamada a participar, com trabalho não remunerado, contribuições etc. Porém, no âmbito macro, de definição das prioridades educacionais, da utilização dos recursos, da avaliação, dos currículos, o PNE-MEC é centralizador, não prevendo a participação dos profissionais, pais, alunos e comunidade.
Para
a consecução de todas as metas quantitativas, o MEC não propõe nenhum aumento significativo de gastos
governamentais, mas apenas a “racionalização” dos recursos já disponíveis, que,
bem empregados, seriam suficientes para cumprir as metas. Embora seja verdade
que a diminuição ou eliminação dos desperdícios dos governos possibilitariam um
volume significativo de recursos adicionais para atender a tais metas, ainda
assim é pouco provável que as metas do MEC possam ser realizadas apenas com o
uso “judicioso” dos recursos constitucionalmente vinculados à educação (pelo
menos 18% dos impostos, no caso da União, e pelo menos 25% no caso de Estados,
Distrito Federal e municípios). Em primeiro lugar, se até hoje as práticas dos
governantes têm deixado muito a desejar em termos do uso judicioso desses
recursos, por que razão mudarão a partir de agora? Como o PNE-MEC não aponta
elementos concretos que permitam esperar a aplicação correta e racional dos
recursos da educação, as suas metas carecem de fundamentação, por não definirem
a origem dos recursos adicionais para a sua realização. A única previsão de
aumento de recursos é insignificante, pois estabelece 6,5% (dos governos e da
iniciativa privada) do PIB até o final dos 10 anos do PNE. Ora, segundo a
tabela 56 do PNE-MEC (p. 129), os gastos educacionais (de todos os níveis de
ensino) teriam sido estimados em 5,97% do PIB em 1995, sendo 1,12% do setor
privado. Como a meta é de 6,5% ao fim da década, isso significaria um ínfimo
crescimento de 0,5% (6,5 - 5,97) em 10 anos, correspondentes a 0,05% ao ano.
Como 20% deste crescimento (0,1% em 10 anos, ou 0,01% por ano) seriam pelo
menos do setor privado, o incremento do setor público (federal, estadual e
municipal) seria de 0,04% ao ano, equivalente a pífios R$ 296 milhões,
tomando-se como base os dados do PIB contidos na tabela 56. Fica claro, pois,
que ou as metas do PNE-MEC são apenas retórica ou ele espera contar com a
participação da sociedade (leia-se “iniciativa privada” e trabalho voluntário
das “comunidades”) para cumpri-las. Em última análise, ambos os ingredientes
estão presentes nas metas. A indigência técnica do PNE-MEC (para não falar do
seu descompromisso social) se revela
ainda na não-estimativa dos custos de cada matrícula adicional nos vários
níveis e modalidades de ensino. Ora, qualquer plano de expansão da educação,
para ter o mínimo de fundamentação técnica, deve fazer tal estimativa e fixar a
origem dos recursos. Ora, o PNE-MEC não fez tal estimativa e apenas esboçou a origem
dos recursos (participação da comunidade e ONGs, incentivo ao setor privado e
“racionalização” dos gastos), não estabelecendo a correlação entre o montante
obtido com tais fontes e os custos estimados das novas matrículas.
Ao
contrário do PNE-MEC, o do Coned foi fruto de ampla mobilização e participação
de uma série de entidades envolvidas com a educação, tendo sido a culminação de
dois congressos realizados com este fim, o primeiro em julho de 1996, o segundo
em novembro de 1997, ambos em Belo Horizonte.
Para o PNE-Coned, os problemas educacionais seriam conseqüência sobretudo de políticas governamentais de inspiração neoliberal e da influência de organismos internacionais (em especial o Banco Mundial), pressupondo, assim, que bastaria uma correção de rumo dessas políticas no sentido de uma vaga e genérica “inclusão social” para resolver tais problemas. Ora, ainda que tais políticas tenham agravado a situação social e, em particular, a educação nos últimos anos, o seu efeito foi mais de caráter conjuntural do que estrutural, uma vez que a exclusão social e educacional é bastante anterior às políticas atuais. Essa exclusão só pode ser compreendida e combatida se examinarmos e enfrentarmos os seus condicionantes estruturais: a sociedade capitalista de classes, subordinada. O caráter dependente do Estado brasileiro é indicado na Introdução do PNE-Coned, porém não a sua marca capitalista de classe. Aliás, os conceitos “capitalismo” e “classe social” não são mencionados uma única vez sequer em todo o Plano, mas apenas “nação”, “povo”, “maiorias”, “excluídos”. Essa é uma das debilidades fundamentais do PNE-Coned em sua proposta de inclusão social, pois pressupõe seja isso possível com um “desenvolvimento auto-sustentado, tendo no Estado o referencial de articulação e indicação para o fortalecimento do mercado interno, para uma política econômica que favoreça a geração de empregos e de renda, a reforma agrária, uma efetiva política agrícola , uma política de ciência e tecnologia, articuladas com as necessidades nacionais.” (Introdução do PNE-Coned). Ora, mesmo que o Estado brasileiro perca ou diminua algumas de suas características privatizantes por conta de um projeto “nacional” que promova as mencionadas reformas, o máximo que poderia ocorrer seria a diminuição da exclusão social, mas não a inclusão social, só possível numa nova ordem social, sem exploradores e explorados. Como o PNE-Coned não tem o horizonte de ruptura com a ordem burguesa, a sua proposta de inclusão social e de solução dos problemas sociais e educacionais acaba sendo sobretudo retórica. A evasão e repetência, por exemplo, não foram causadas pelo neoliberalismo nem pelas políticas atuais. Podem ter sido acentuadas por ele, porém sua razão mais profunda está na sociedade capitalista, que tem na escola (que, cabe frisar, não serve apenas a este propósito) mais um instrumento de produção e legitimação das desigualdades sociais com base no tipo e grau de escolarização dos indivíduos. Ainda que possam e devam ser combatidas por governos reformistas dentro da ordem burguesa, a evasão e a repetência têm suas raízes na estrutura social e política que subjaz a tais governos e impõe limites a quaisquer ações reformistas. Isso não significa que tais reformas não possam contribuir para minorar os problemas educacionais, mas é um equívoco pensar que possam saná-los, uma vez que são sobretudo de natureza estrutural, não conjuntural.
Em
contraposição à proposta neoliberal de “qualidade total”, o PNE-Coned lança um
vago conceito de “qualidade social”, que, ao contrário do outro, não seria
regida pela ótica do mercado. Ora, como o PNE-Coned não contempla uma sociedade
não dominada pela lógica do mercado, mas apenas uma em que o mercado não seja
tão excludente (pois apenas propõe o desenvolvimento do mercado interno,
mencionado antes), o conceito de “qualidade social” carece de qualquer
fundamento, a não ser que o objetivo dos mentores do PNE-Coned tenha sido
apenas retórico, criando um slogan para se contrapor à “qualidade total” do
neoliberalismo.
Ao
contrário do PNE-MEC, o do Coned afirma que não cabe à sociedade (ONGs,
comunidade escolar, setor privado) oferecer ou manter a educação, que seria
direito de todos e dever do Estado. Porém, ela, através de suas entidades
representativas, seria fundamental na gestão das escolas e dos sistemas
educacionais, através de Fóruns (Fóruns Nacional, Estaduais e Municipais),
encarregados de elaborar e acompanhar a política educacional dos governos. Em
outras palavras, caberia ao Estado financiar a educação pública, a ser gerida
por tais entidades representativas. Haveria, assim, uma responsabilização dos
governos no financiamento e manutenção da escola pública, porém uma
descentralização de sua gestão no âmbito dos sistemas educacionais e da própria
escola (Conselhos Escolares) ou universidade (Conselhos Universitários). Não
seria, portanto, uma descentralização administrativa, como prevê o PNE-MEC, mas
política. Uma questão não enfrentada pelo PNE-Coned é que tais entidades não
representam necessariamente o interesse público, sendo muitas orientadas por
interesses privatistas, inclusive muitas ONGs. Portanto, os problemas da gestão
das escolas e dos sistemas educacionais não seriam necessariamente resolvidos
por essa descentralização.
Para
atender as suas metas, mais ambiciosas do que as do MEC, o PNE-Coned previu
cerca de 10% do PIB (Produto Interno Bruto) em gastos públicos em educação, ao
fim do período de 10 anos de vigência do PNE. No entanto, a sua
operacionalização apresenta problemas. Em primeiro lugar, mesmo que os governos
indiquem nos orçamentos e balanços estarem aplicando o correspondente a 10% do
PIB, nada garante que isso esteja acontecendo na prática, pois não é incomum os
governos declararem dispêndios contábeis em educação que não representam
despesas reais. Em segundo lugar, de nada adianta destinar 10% do PIB para a
educação pública se grande parte dos recursos for absorvida pela burocracia,
que é quem controla a destinação das verbas. É sabido que boa parte dos
recursos públicos se perdem nas atividades-meio e não beneficiam as
atividades-fim (a escola e a sala de aula) e o aumento de recursos para a
educação não garante necessariamente o atendimento de certas metas de ampliação
de vagas, contratação de profissionais da educação e funcionários, se a
burocracia educacional não for contida em sua voracidade. Em síntese, não basta
garantir mais recursos. É preciso também assegurar a sua efetiva aplicação (e
não apenas contábil) na melhoria das atividades-fim (o professor e o aluno).
Por último, a obrigação de destinação de 10% do PIB será dificilmente
operacionalizável porque o PIB é uma renda nacional (dos governos e iniciativa
privada), não apenas dos governos, e será impossível responsabilizar o conjunto
dos governos, as diferentes esferas de governo (federal, estadual e municipal)
ou cada governo individualmente em termos de percentual do PIB. Talvez o único
que possa ser responsabilizado em certa medida seja o federal, até porque
individualmente detém grande parcela da receita nacional. Quando as
responsabilidades financeiras não são claramente definidas, o seu
descumprimento é inevitável.
Um
outro item importante do financiamento previsto no PNE-Coned é o que serve de
referência para o valor do custo-aluno-qualidade-ano, que, no caso da educação
básica, equivaleria a 25% (educação infantil, ensino fundamental e ensino
médio) da renda nacional per capita, critério este aparentemente baseado nos gastos em educação
dos países capitalistas avançados. Este custo representaria US$ 1.000 em 1997
(25% da renda nacional per capita na época), ou o equivalente a R$ 2.500
em 2001. Há dois problemas neste critério. Um é tomar como referência o dólar
norte-americano, que o governo brasileiro não tem o poder de emitir e cujo
valor é altamente variável, tendo subido muito mais do que a renda per
capita desde 1997. Outro problema é que a disponibilidade real e potencial
de recursos é bastante variável entre os Estados e municípios, cuja imensa
maioria (sobretudo de municípios) não contariam com o valor mínimo, mesmo
aplicando o percentual mínimo da receita de impostos e as receitas adicionais
trazidas pelas propostas de criação de salário-creche, imposto sobre grandes
fortunas, combate à sonegação e renúncia fiscal, isenções fiscais e ao FEF
(Fundo de Estabilização Fiscal), contidas no PNE-Coned. A debilidade do
PNE-Coned é não prever um mecanismo de equalização dos recursos entre União,
Estados e Municípios, para garantir a disponibilidade de US$ 1.000 por aluno em
todas as redes escolares de todo o Brasil. O Fundef promoveu essa equalização
em certo grau limitado, porém só em âmbito estadual e tendo como referência
apenas uma parte dos impostos e as matrículas do ensino fundamental regular.
Antes
de fazer comentários específicos sobre o PNE-Lei sancionado pelo presidente
FHC, cabe lembrar a sua estrutura e a sua origem. O PNE-Lei compõe-se de 6
partes. A primeira é uma introdução, contendo um histórico dos planos e os
objetivos e prioridades do PNE. A segunda trata dos níveis de ensino e se
divide em educação básica (por sua vez, subdividida em educação infantil,
ensino fundamental e ensino médio) e educação superior. A terceira é dedicada a
várias modalidades de ensino (educação de jovens e adultos, educação à
distância e tecnologias educacionais, educação tecnológica e formação
profissional, educação especial, educação indígena). A quarta diz respeito ao
magistério da educação básica; a quinta, ao financiamento e gestão. A última
parte refere-se ao acompanhamento e avaliação do PNE-Lei. Com exceção dessa
última parte e da primeira (Introdução), todas as outras contêm um diagnóstico,
diretrizes, objetivos e metas. Embora não faça parte do PNE-Lei propriamente
dito, a mensagem No. 9 encaminhada pelo presidente FHC ao presidente do Senado
Federal em 9 de janeiro de 2001, contendo os vetos e as suas justificativas ao
projeto de lei 42, de 2000 (o PNE-substitutivo), é um importante elemento de
análise, pois praticamente todos os vetos dizem respeito à previsão de recursos
para a concretização das diretrizes e metas do PNE-Lei, mostrando claramente a
debilidade de um PNE-Lei que estabelece metas de expansão para todos os níveis
e modalidades de ensino, mas não prevê nem os custos nem a fonte de recursos
adicionais para o financiamento de tais metas.
A
propósito, tais vetos acabaram por gerar uma contradição dentro do próprio
PNE-Lei, pois, enquanto o seu diagnóstico é idêntico ao do PNE-substitutivo,
alguns de seus objetivos e metas foram vetados pelo presidente FHC. Assim, o
diagnóstico fala da necessidade de aumento dos gastos do conjunto das três
esferas de governo (federal, estadual e municipal) para 7% do PIB, porém esta
meta foi vetada, produzindo-se assim um plano que não é plano, pois não define
a origem dos recursos adicionais para o financiamento das metas de expansão. O
diagnóstico também menciona um padrão mínimo de qualidade, materializado num
custo-aluno-qualidade e na meta 7 do PNE-substitutivo, também vetada. Para os
vetos, o presidente alegou que a meta de 7% do PIB contraria o disposto na Lei
Complementar 101 (Lei de Responsabilidade Fiscal), não indica fonte de receita
correspondente e não está em conformidade com o PPA (Plano Plurianual) do
governo federal. As alegações são frágeis pois os governos podem fazer - e o
fazem o tempo todo - remanejamento (legal e ilegal) de verbas. Um exemplo é a
desvinculação de impostos de MDE promovida pelo governo federal através de
Emendas Constitucionais desde 1994, comentada no início. Além disso, o PPA será
inevitavelmente bastante alterado pelo simples fato de o próprio governo
preferir remunerar o capital financeiro (através da taxa de juros) a investir
nos setores sociais, fragilizando qualquer meta de qualquer plano aparentemente
voltado para as necessidades dos trabalhadores.
Se
o PNE-Lei não estabelece a fonte de financiamento adicional de suas metas, qual
a mágica que garantirá o atendimento das metas de expansão, na sua avaliação?
Basicamente, a mera aplicação do percentual mínimo de impostos vinculados
constitucionalmente à MDE, a “racionalização” dos gastos (usando os mesmos
recursos para atender a um número maior de alunos - meta muito enfatizada no
financiamento do ensino superior estatal), e a participação da sociedade
(através de trabalho voluntário e contribuições financeiras), das ONGs
(organizações não governamentais), da iniciativa privada e de novas tecnologias
(educação à distância).
Para a aplicação do percentual
mínimo, o PNE-Lei propõe as metas 2 a 5 (seção "Financiamento e
gestão"), que prevêem mecanismos de fiscalização e controle da aplicação
do percentual mínimo com base nas determinações da LDB, mobilizando inclusive
Tribunais de Contas, Procuradorias da União e dos Estados, Conselhos do Fundef,
sindicatos, ONGs e a população em geral para essa fiscalização. Esta proposta,
presente também no PNE-MEC, tem a virtude de chamar a atenção para um problema
antigo e ainda não resolvido, que é a não-aplicação, pelos governos, dos
recursos legalmente vinculados à MDE. Em estudos que realizamos sobre os gastos
contábeis de prefeituras e do governo estadual fluminense (DAVIES, 2000;
DAVIES, 2001a) e também por outros estudiosos (CALLEGARI, 1997), constatamos
que bilhões de reais legalmente devidos
deixaram de ser aplicados em MDE. A prefeitura do Rio de Janeiro, por exemplo,
deixou de aplicar mais de R$ 1 bilhão devido em 1998 e 1999. O governo do
Estado de São Paulo deixou de investir quase R$ 7 bilhões devidos em MDE de
1995 a 1999, segundo apurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito instalada em
1999 na Assembléia Legislativa de São Paulo. A Subcomissão de Investigação dos
Recursos do Fundef, criada pela Comissão de Educação da Câmara dos
Deputados, também apurou uma série de
irregularidades praticadas com os recursos do Fundef numa infinidade de
municípios e Estados (BRASIL, Congresso Nacional, 2001).
Quanto aos Tribunais de
Contas, embora constitucionalmente incumbidos de fiscalizar as contas
governamentais, é pouco provável que demonstrem o necessário rigor em tal
fiscalização, a não ser que estejam sob a vigilância atenta da opinião pública
(o que quase nunca acontece) ou, por alguma razão “especial”, estejam
perseguindo o governante em questão (“para amigos, tudo; para os inimigos, o
rigor da lei”). Afinal de contas, seus conselheiros foram nomeados a partir de
“acordos” entre parte do legislativo e o executivo. Além disso, sua competência
técnica está longe da desejável, conforme constatamos em estudo sobre as
instruções normativas que elaboram para avaliar as receitas e gastos em MDE
(DAVIES, 2001b). De qualquer maneira, mesmo que os Tribunais fossem confiáveis
do ponto de vista ético e técnico e elaborassem pareceres bem fundamentados,
estes podem ser constitucionalmente derrubados (por maioria de 2/3 dos
“representantes” do povo) pelo legislativo, que, em última análise, é quem
aprova as contas governamentais.
É verdade que, se os governos
cumprissem o que manda o Art. 212 da Constituição Federal ou os artigos
correspondentes das Constituições Estaduais e Leis Orgânicas, a educação
pública nacional receberia um acréscimo de receita que corresponderia a alguns
bilhões de reais por ano (talvez até superando os 10 bilhões), permitindo o
atendimento de algumas das metas do PNE-Lei. Porém, será um atendimento apenas parcial e tendo como base o
padrão de qualidade atualmente existente, que está longe do desejável e não é
considerado pelo PNE-Lei como meta a ser buscada. Se o descumprimento desta
exigência constitucional (e também de muitas outras) é costumeiro nos
governantes, que, para isso, têm contado com a conivência do Legislativo e o
conluio e/ou omissão do Judiciário, não há nenhuma razão para esperar mudança
em suas práticas agora, a não ser que sejam submetidas a um forte e qualificado
controle social. De nada adianta criar mecanismos legais se a população não
exerce um controle direto sobre o Poder Estatal, que está longe de ser Público.
A proposta de “racionalização”
dos gastos - ou seja, usar os mesmos recursos físicos, técnicos, humanos e
financeiros para atender a um número maior de matrículas - está mais dirigida
para o ensino superior estatal, sobretudo o federal. Embora o diagnóstico de
gasto excessivo por aluno no ensino superior público esteja presente no
PNE-MEC, no PNE-Lei (que reproduz o do PNE-substitutivo) ele desaparece, porém
não nos objetivos e metas, em que o
financiamento do ensino superior estatal fica condicionado ao número de
alunos atendidos e à pesquisa. Isso significa que o financiamento das
instituições federais dependerá da sua produtividade medida em número de
matrículas. A “racionalização” dos custos está também implícita na proposta do
PNE-Lei de diversificação das instituições de ensino superior, com algumas se
dedicando à pesquisa, ensino e extensão (as universidades), e outras apenas ao
ensino.
A diversificação abrangeria a
criação de novas modalidades de ensino superior, como os cursos seqüenciais e
cursos modulares, que parecem feitos sob medida para a iniciativa privada, cuja
expansão era vista como aceitável e desejável no PNE-MEC para atender à meta de
30% da população de 18 a 24 anos em 10 anos, contra o percentual de 12% em
1997. O incentivo maior à iniciativa privada não vem apenas do objetivo
explícito 27 (“oferecer apoio e incentivo governamental para as instituições
comunitárias sem fins lucrativos, preferencialmente aquelas situadas em
localidades não atendidas pelo Poder Público, levando em consideração a
avaliação do custo e a qualidade do ensino oferecido”), mas sobretudo da
contenção do setor estatal, presente em dois dos vetos presidenciais a objetivos constantes do
PNE-substitutivo e também na política federal dos últimos anos. Um objetivo
vetado era ampliar a oferta de ensino público de modo a assegurar uma proporção
não inferior a 40% do total das vagas, prevendo inclusive a parceria da União
com os Estados na criação de novos estabelecimentos de educação superior. Este
objetivo do PNE-substitutivo, claramente defensivo, pretendia apenas que o
setor público não perdesse espaço para a iniciativa privada, como vem perdendo
nas últimas décadas. O outro objetivo vetado estipulava a triplicação do
financiamento público à pesquisa científica e tecnológica em 10 anos.
A
outra mágica que, segundo o PNE-Lei, permitiria atender as suas metas, não
ambiciosas quanto as do PNE-Coned, seria a convocação para a participação da
sociedade, enfatizada sobretudo para o objetivo de erradicação do
analfabetismo. Segundo o seu diagnóstico para a educação de jovens e adultos
(EJA), “sem uma efetiva contribuição da sociedade civil, dificilmente o analfabetismo
será erradicado e, muito menos, lograr-se-á universalizar uma formação
equivalente às oito séries iniciais do ensino fundamental. Universidades,
igrejas, sindicatos, entidades estudantis, empresas, associações de bairros,
meios de comunicação de massa e organizações da sociedade civil em geral devem
ser agentes dessa ampla mobilização.” Tal contribuição se daria na forma da
utilização de “espaços ociosos existentes na comunidade, bem como efetivo
aproveitamento do potencial de trabalho comunitário das entidades da sociedade
civil” (objetivo 8 da EJA) e de trabalho não-remunerado de estudantes de
educação superior e cursos de formação de professores em nível médio, que
ganhariam apenas “créditos curriculares” (objetivo 11). A deficiência do diagnóstico
e dos objetivos do PNE-Lei está em que, embora reconheça a importância do
financiamento público das ações de erradicação do analfabetismo, não estipula
recursos significativos para isso. Os dois únicos objetivos sobre isso (10 e 11
da parte dedicada ao financiamento) são excessivamente modestos, sobretudo
quando se considera a necessidade de atendimento de pelo menos 16 milhões de
analfabetos, segundo as estatísticas oficiais. Os recursos estaduais e
municipais para tal fim seriam constituídos pelos 15% dos impostos que não
entram na constituição do Fundef (o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do
Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério). O problema é que os 15% desses impostos (IPTU,
ISS, ITBI, Imposto de renda dos servidores municipais, e IPVA, no caso dos
municípios, e IPVA, ITCD e Imposto de renda dos servidores estaduais, no caso
dos Estados) são insignificantes na imensa maioria dos municípios pobres dos
mais de 5.500 existentes, cuja receita principal é constituída de FPM (Fundo de
Participação dos Municípios) e ICMS, não de impostos próprios. É bastante
provável que estes 15% dos impostos que não entram no Fundef representem, nos
municípios mais pobres, no máximo 5% da receita total de impostos,
correspondendo a valores irrisórios para atender a metas tão ambiciosas. Essa
imensa carência dificilmente seria compensada pelo apoio financeiro da União
aos municípios mais pobres (objetivo 11), pois o governo federal destinou para
este fim apenas R$ 187 milhões em 2001 (R$ 230,00 por matrícula, no âmbito do
programa “Recomeço”) e não tem demonstrado sensibilidade para essa questão,
pois nunca cumpriu o Art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias da CF de 1988 (conforme denunciado em vários relatórios do
Tribunal de Contas da União), que determinava ao Poder Público a destinação de
50% do percentual mínimo previsto na Constituição Federal de 1988 (9% dos
impostos no caso da União) para a universalização do ensino fundamental e a
erradicação do analfabetismo. Além disso, a Emenda Constitucional 14, de sua
iniciativa, reduziu este percentual de 50% para o equivalente a 30% dos 18%,
uma redução de 9% (50% dos 18%) dos impostos para 5,4% (30% dos 18%),
percentual que é diminuído para 4,3% pela Emenda Constitucional que desvincula 20%
da receita de impostos da União (a DRU, mencionada antes). Como na
contabilização dos 4,3% o governo federal pode legalmente incluir a quota
federal do salário-educação (que não é imposto e foi de R$ 1,2 bilhão em 2002),
na prática o governo federal só seria obrigado a aplicar menos de 4% dos
impostos não só na erradicação do analfabetismo como também no ensino
fundamental. Como vários dos seus programas (merenda, livro didático, dinheiro
direto na escola, transferências à educação do Distrito Federal e outros) podem
ser contabilizados nos 4%, o que sobra para a EJA é irrisório, do ponto de
vista legal. Talvez isso explique a miséria dos R$ 187 milhões concedidos em
2001 para a EJA dentro do programa “Recomeço”.
A
fragilidade do financiamento da EJA pelos 15% dos impostos que não integram o
Fundef é aumentada pelo fato de a lógica do Fundef só privilegiar as matrículas
do ensino fundamental regular e deixar de fora as de outros níveis e
modalidades de ensino, inclusive as do ensino fundamental supletivo, induzindo,
assim, os governos a buscarem matrículas (reais ou falsas) apenas no nível de
ensino com potencial de receita (o fundamental regular), e abandonarem ou
congelarem as de outros níveis, que só representam despesa e não trazem receita
do Fundef.
Essa
mesma lógica também fragiliza o financiamento da educação infantil e do ensino
médio, cujas metas de expansão não seriam alcançadas com recursos novos, mas
apenas com os 10% dos impostos não vinculados ao ensino fundamental pela EC 14
(dos 25% previstos na Constituição Federal). A debilidade do PNE-Lei mais uma
vez fica patente. Conforme já comentado acima, mesmo supondo-se que uma parte
mais ou menos significativa deste percentual não venha sendo aplicada, é pouco
provável que sua aplicação correta (dificilmente garantida, pelas razões já
apontadas) ofereça os recursos necessários. O mais provável é que as metas de
atender, em 10 anos, 50% das crianças de até 3 anos (um acréscimo de 5.867.840
matrículas) e 80% de 4 a 6 anos (mais 7.300.160) e do ensino médio (mais
6.608.531), se forem cumpridas, o sejam de maneira limitadíssima e, mesmo
assim, mediante a compressão (a “racionalização”) dos gastos, inclusive da
remuneração dos profissionais da educação, reduzindo a qualidade da educação
pública e minando dois dos objetivos declarados do PNE.
A propósito dos profissionais
da educação, o PNE enfatiza a sua formação inicial e continuada e praticamente
nada fala sobre sua valorização remuneratória, pressupondo que ela teria sido
resolvida pelo Fundef. Ora, o Fundef só se destina a quem atua no ensino
fundamental regular e exclui os profissionais de outros níveis e modalidades de
ensino. Mesmo quem atua no ensino fundamental regular não será necessariamente
beneficiado pelo Fundef, uma vez que, segundo o balanço feito pelo MEC sobre o
Fundef e divulgado em outubro de 2000, mais de 2.000 prefeituras e quase todos
os governos estaduais perdem recursos para o Fundef e poderão alegar que não
têm condições de melhorar a remuneração deles por causa dessa perda. Se houvesse
uma preocupação séria com a melhoria da remuneração dos profissionais da
educação, ela teria que se basear na totalidade dos recursos da educação, e não
apenas no Fundef, que na verdade representa a parcela menor dos recursos da
educação (cerca de 40% a 45% dos recursos totais vinculados à MDE dos Estados,
Distrito Federal e Municípios). Em 1998, por exemplo, o Fundef nacional
totalizou R$ 13,2 bilhões, porém os recursos vinculados à MDE não integrantes
do Fundef somaram mais de R$ 17 bilhões.
Tampouco se pode esperar muito
da ação supletiva da União para a educação infantil dos municípios, se tomarmos
como referência a complementação federal para o Fundef, que, além de ilegal e
minguante, é irrisória em termos nacionais (menos de 2% do total da receita
nacional do Fundef). A ilegalidade dessa complementação refere-se ao cálculo do
valor mínimo nacional anual supostamente necessário para garantir um padrão
mínimo de qualidade, previsto na Lei 9.424, que regulamentou o Fundef em 1996.
Se a lei fosse cumprida, este valor por matrícula teria sido de mais de R$ 550
em 2001, e não os R$ 363 fixados para as matrículas de 1ª a 4ª séries (segundo
critérios de contenção do gasto público). Estima-se que a não complementação
federal devida terá totalizado bem mais de R$ 7 bilhões de 1998 a 2001. Em
vista desse passado crônico de ilegalidade, não podemos nutrir expectativas de
que o governo federal irá cumprir o objetivo 18 do PNE-Lei (oriundo do
PNE-substitutivo mas não constante do PNE-MEC), que manda a União calcular este
valor mínimo “rigorosamente de acordo com o estabelecido pela Lei 9.424”
(DAVIES, 2001c). Este descumprimento se confirmou em 2001, 2002 e 2003.
Se
tivéssemos que sintetizar os vários PNEs que estiveram em disputa, colocaríamos
num mesmo campo o PNE-MEC, o PNE-substitutivo e o PNE-Lei e, no outro, o
PNE-Coned, embora o PNE-substitutivo tivesse feito pequenas concessões ao campo
“progressista”, como um modesto aumento dos gastos estatais do PIB (7%) para os
próximos 10 anos, uma conciliação entre os 5,5% do PNE-MEC e os 10% do
PNE-Coned. Uma diferença básica entre esses dois campos é sobre o papel do
Estado e da sociedade e sua relação. Enquanto os PNEs do primeiro campo, em
sintonia com a perspectiva neoliberal, diminuem ou congelam a responsabilidade
do Estado e incentivam ou convocam a participação de entidades da sociedade
para suprir as deficiências ou omissões do Estado (inclusive pela
privatização), mas não o controle social sobre as ações estatais, o PNE-Coned
sublinha a responsabilidade do Estado na oferta de serviços educacionais e
atribui a tais entidades o papel de, através de fóruns e conselhos, formular a
política e controlar a gestão educacional desde o nível micro (a escola) até o
macro (os sistemas educacionais). Essa foi a disputa básica entre os vários
PNEs. Ambos os campos apresentam debilidades. Os PNEs do campo neoliberal se
enredam numa contradição interna insolúvel, que consiste na elaboração de um
plano de ação estatal a partir de um diagnóstico que identifica a ineficiência
e insuficiência dessa mesma ação estatal como o principal problema e propõe
como solução o incentivo e convocação à participação da sociedade (pais de
alunos e instituições privadas sobretudo) para suprir essa insuficiência e
corrigir a ineficiência usando os seus próprios meios e recursos, e não os
meios e recursos de que dispõem os órgãos centrais da burocracia. Tais PNEs
neoliberais seriam, assim, apenas uma reedição da socialização do prejuízo ou
da miséria (educacional, neste caso), antiga prática das classes dominantes de
todo o mundo, para garantir ou intensificar, pela via estatal, a privatização
do lucro (ou dos recursos públicos, neste caso). O PNE-Coned, por outro lado,
embora se oponha em muitos aspectos aos PNEs neoliberais, reduz o diagnóstico a
problemas conjunturais (neoliberalismo, políticas atuais) e não capta a
dimensão estrutural (o capitalismo dominado) de muitas questões educacionais
(evasão e repetência, por exemplo). Como não se dispõe a enxergar o caráter
estruturalmente privatista do Estado capitalista dominado, suas propostas -
embora nada revolucionárias em termos qualitativos, pois não pretendem mudar a
natureza da escola - não seriam realizáveis em sua plenitude, porque limitadas
ao plano conjuntural, das políticas governamentais. Mesmo um governo de
discurso seriamente reformista (para distinguir dos que são apenas demagógicos,
de palanque) dificilmente realizará muitas das metas do PNE-Coned, se não
enfrentar os condicionantes estruturais da ação estatal.
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* Versão modificada do artigo publicado originalmente em Universidade e Sociedade n. 25, de dezembro de 2001, e em Cadernos Anpae n. 1, de agosto de 2002.